
Ele é o tipo de polícia que rouba drogas de um cadáver, o tipo de pai que alimenta a sua dependência das drogas em vez da família...
O seu crachá não significa nada para ele, a não ser o direito que lhe dá de se comportar como os criminosos que deveria perseguir. A raiva feroz que existe por detrás da sua personalidade é ainda alimentada pela sua dependência da heroína, do crack e do álcool. Mas quando uma jovem freira é violada no altar de uma igreja do bairro, este polícia sem lei (Harvey Keitel) é atraído pelo seu caso e por uma derradeira e desesperada tentativa de encontrar os verdadeiros caminhos do poder da misericórdia.
É um cinema de extremos, onde as portas para o céu e para o inferno ficam frente a frente no corredor do purgatório. E o que parece impressionante num momento, como a cena de abertura, quando, depois de deixar seus filhos na porta da escola, com o carro ainda parado em fila dupla, o Tenente viciado e desamparado puxa um papelote de coca pra cheirar, acaba se tornando uma imagem corriqueira depois de outra, e mais outra, e mais outra tão ou mais intensas vêm pra enterrar os conceitos de limites que construímos para o próprio filme.
Ao mesmo passo que Abel Ferrara fotografa uma verdadeira descida ao inferno, onde o mal é combatido com o mal e o bem fica muito mais como uma grande ilusão intelectual, Ferrara transforma este Bad Lieutenant num filme de dupla personalidade – mas sem distingui-las jamais. E tudo não passa de um reflexo da própria condição do protagonista, que em sua doença esconde todo o penar que lhe castiga, mas que permanece sufocando e matando por dentro – e é uma tremenda maldade que a exteriorização disso tudo seja feita justamente quando consegue liberar seus demónios, tanto na cena da igreja, onde imagina Jesus Cristo e implora-lhe perdão, quanto na própria acção de libertar das consequências aqueles jovens criminosos que estupram a freira – num misto de boa e má acção, o que não poderia ser mais fiel à dualidade de sentimentos que fazem dele um dos anti-heróis mais complexos do cinema.
E essa grande ilusão entre o castigo e a redenção – que em muitos momentos é tratada como tal, principalmente na construção de toda a atmosfera onírica evocada por um ou outro elemento de cena, quase sempre a iluminação – é registada com uma frieza assustadora, como se o próprio personagem impusesse à câmara os limites para a dissecação de sua dor e de seu mergulho predestinado ao afogamento.
E ainda assim o filme consegue ser de uma intensidade dominadora, e talvez seja por isso que o final, totalmente traiçoeiro, deixe uma sensação tão desconfortável, ainda que seja sabido que a própria acção nada mais é do que uma concretização daquilo que o homem havia tentado fazer consigo o filme todo, só que não conseguia por a acção vir de dentro, de um ponto que já não acompanhava mais aquela caminhada desorientada e, portanto, não respondia.
Enfim... um filme a não perder.
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